Escrito por Folha Online
LUCAS NEVES
enviado especial da Folha ao Rio
Norma Bengell perdeu as contas de quantas vezes foi detida durante a ditadura. "Quando não tinham mais ninguém para prender, iam lá em casa."
Em 1971, exilou-se na França. Nos anos seguintes, alternou trabalhos no cinema e no teatro, entre a Europa e o Brasil. Foi vista nos sets de Rogério Sganzerla ("O Abismo"), Glauber Rocha ("A Idade da Terra") e Walter Hugo Khouri ("Eros, o Deus do Amor"). No palco, atuou sob a direção de Patrice Chéreau, figura central das artes cênicas francesas.
Na sequência, viria um hiato teatral de mais de 20 anos. "A gente não se afasta dos lugares. São as pessoas que nos esquecem, não nos chamam mais." Ela tenta espantar a mágoa com um chiste. "Mando tomar 'Memoriol'."
A reconciliação deveria vir em 2007, em "O Relato Íntimo de Madame Shakespeare", testemunho ficcional da solidão de Anne Hathaway, mulher do dramaturgo inglês. Mas uma crise nervosa a deixou sem fala em cena e a afastou da peça após quatro apresentações.
"Tive uma alta de pressão por conta de uma perda violenta [sua sócia e amiga íntima Sonia Nercessian morreu de câncer]. Fui com o maior gás e desabei. Me deu um branco. Ai, que vergonha!", diz a atriz, com lágrimas nos olhos. "Achei que fosse mais forte. Pretensão, né?"
Também contribuiu para o desequilíbrio emocional o imbróglio jurídico envolvendo a prestação de contas de "O Guarani" (1996), longa-metragem em que Norma acumulou os papeis de produtora e diretora. Fracasso de público e crítica, o filme teve autorização do Ministério da Cultura (MinC) para captar, via leis de renúncia fiscal, R$ 3,9 milhões. Levantou R$ 2,99 milhões.
O MinC achou notas frias na prestação de contas e passou o caso ao Tribunal de Contas da União, que também acusou retirada de "pró-labore" (quantia que o produtor destina a si mesmo pelo trabalho realizado) em valor superior ao permitido --e determinou a devolução de R$ 3,8 milhões.
"Não me importo"
A Justiça do Rio decretou a indisponibilidade dos bens de Norma, e ela foi indiciada pela Polícia Federal por lavagem de dinheiro, evasão de divisas e apropriação indébita.
"Não me importo nem um pouco. Tenho a consciência limpa. Sei onde ponho meu nariz, de onde pego minhas coisas", afirma, voltando a se emocionar. "Seria incapaz de mexer no que não é meu."
Segundo ela, o ministério "implicou com uma nota dada por uma pessoa que não tinha pago ISS ou INSS, um 's' desses". Norma diz que, ao perceber que havia levantado mais dinheiro do que precisaria, devolveu R$ 500 mil ao MinC.
Ao fim do projeto, restou à produtora e diretora uma remuneração de R$ 17 mil. "Falei 'não é possível!'. Era um trabalho de dez anos. Então, [integrantes da equipe] falaram que eu tinha de me pagar. Aí, peguei um dinheiro lá e botei no meu pagamento. Não avisei ao MinC, e isso não pode. Me dei R$ 400 mil, porque os cineastas ganham R$ 500 mil, R$ 800 mil, R$ 1 milhão."
Hoje, afirma Norma, um processo foi arquivado, dois foram ganhos por ela e um está em aberto. Seus bens estão bloqueados. "O advogado não me cobra, sabe que estou dura."
Melancolia
Ela mora numa casa de dois andares, com piscina, numa região nobre da capital fluminense. "Comprei essa casa muito velhinha. Fui reformando aos poucos. Não estou numa situação difícil de passar fome, mas tenho de trabalhar para ganhar dinheiro. O que eu roubei d''O Guarani' deve estar na Suíça, né?", diz. "Se amanhã eu ganhar um Oscar, alguém vai falar: 'E 'O Guarani'?' É a única mácula na minha carreira."
Já com as pernas "dormentes como as de Winnie", a personagem coberta de terra até o pescoço que ela se prepara para encarnar em "Dias Felizes", Norma pede licença da entrevista para ensaiar. "Depois, erro o texto, e eles [o diretor Emílio di Biasi e o produtor Alexandre Brasil] brigam comigo", justifica, num lance de charme para desanuviar a melancolia que se fixou em seu olhar.
No segundo ato da peça de Beckett, Winnie não mais alcança os objetos que até ali alimentaram sua tagarelice. Norma, de seu lado, abandona as reminiscências cômicas sobre colegas de sets e palcos no "segundo ato" da entrevista. Prefere as digressões sobre os sonhos em que a mãe a visita.
"Que estranho. Parece que sempre tem alguém me olhando", diz a personagem, num dos momentos preferidos da atriz. "Deve ter alguém olhando por mim, né, porque é tudo tão perigoso...", acrescenta Norma, fora do texto. Quando a plateia do teatro ouvir "terá sido mais um dia feliz", já não saberá mais quem fala.
Em 1971, exilou-se na França. Nos anos seguintes, alternou trabalhos no cinema e no teatro, entre a Europa e o Brasil. Foi vista nos sets de Rogério Sganzerla ("O Abismo"), Glauber Rocha ("A Idade da Terra") e Walter Hugo Khouri ("Eros, o Deus do Amor"). No palco, atuou sob a direção de Patrice Chéreau, figura central das artes cênicas francesas.
Na sequência, viria um hiato teatral de mais de 20 anos. "A gente não se afasta dos lugares. São as pessoas que nos esquecem, não nos chamam mais." Ela tenta espantar a mágoa com um chiste. "Mando tomar 'Memoriol'."
A reconciliação deveria vir em 2007, em "O Relato Íntimo de Madame Shakespeare", testemunho ficcional da solidão de Anne Hathaway, mulher do dramaturgo inglês. Mas uma crise nervosa a deixou sem fala em cena e a afastou da peça após quatro apresentações.
"Tive uma alta de pressão por conta de uma perda violenta [sua sócia e amiga íntima Sonia Nercessian morreu de câncer]. Fui com o maior gás e desabei. Me deu um branco. Ai, que vergonha!", diz a atriz, com lágrimas nos olhos. "Achei que fosse mais forte. Pretensão, né?"
Também contribuiu para o desequilíbrio emocional o imbróglio jurídico envolvendo a prestação de contas de "O Guarani" (1996), longa-metragem em que Norma acumulou os papeis de produtora e diretora. Fracasso de público e crítica, o filme teve autorização do Ministério da Cultura (MinC) para captar, via leis de renúncia fiscal, R$ 3,9 milhões. Levantou R$ 2,99 milhões.
O MinC achou notas frias na prestação de contas e passou o caso ao Tribunal de Contas da União, que também acusou retirada de "pró-labore" (quantia que o produtor destina a si mesmo pelo trabalho realizado) em valor superior ao permitido --e determinou a devolução de R$ 3,8 milhões.
"Não me importo"
A Justiça do Rio decretou a indisponibilidade dos bens de Norma, e ela foi indiciada pela Polícia Federal por lavagem de dinheiro, evasão de divisas e apropriação indébita.
"Não me importo nem um pouco. Tenho a consciência limpa. Sei onde ponho meu nariz, de onde pego minhas coisas", afirma, voltando a se emocionar. "Seria incapaz de mexer no que não é meu."
Segundo ela, o ministério "implicou com uma nota dada por uma pessoa que não tinha pago ISS ou INSS, um 's' desses". Norma diz que, ao perceber que havia levantado mais dinheiro do que precisaria, devolveu R$ 500 mil ao MinC.
Ao fim do projeto, restou à produtora e diretora uma remuneração de R$ 17 mil. "Falei 'não é possível!'. Era um trabalho de dez anos. Então, [integrantes da equipe] falaram que eu tinha de me pagar. Aí, peguei um dinheiro lá e botei no meu pagamento. Não avisei ao MinC, e isso não pode. Me dei R$ 400 mil, porque os cineastas ganham R$ 500 mil, R$ 800 mil, R$ 1 milhão."
Hoje, afirma Norma, um processo foi arquivado, dois foram ganhos por ela e um está em aberto. Seus bens estão bloqueados. "O advogado não me cobra, sabe que estou dura."
Melancolia
Ela mora numa casa de dois andares, com piscina, numa região nobre da capital fluminense. "Comprei essa casa muito velhinha. Fui reformando aos poucos. Não estou numa situação difícil de passar fome, mas tenho de trabalhar para ganhar dinheiro. O que eu roubei d''O Guarani' deve estar na Suíça, né?", diz. "Se amanhã eu ganhar um Oscar, alguém vai falar: 'E 'O Guarani'?' É a única mácula na minha carreira."
Já com as pernas "dormentes como as de Winnie", a personagem coberta de terra até o pescoço que ela se prepara para encarnar em "Dias Felizes", Norma pede licença da entrevista para ensaiar. "Depois, erro o texto, e eles [o diretor Emílio di Biasi e o produtor Alexandre Brasil] brigam comigo", justifica, num lance de charme para desanuviar a melancolia que se fixou em seu olhar.
No segundo ato da peça de Beckett, Winnie não mais alcança os objetos que até ali alimentaram sua tagarelice. Norma, de seu lado, abandona as reminiscências cômicas sobre colegas de sets e palcos no "segundo ato" da entrevista. Prefere as digressões sobre os sonhos em que a mãe a visita.
"Que estranho. Parece que sempre tem alguém me olhando", diz a personagem, num dos momentos preferidos da atriz. "Deve ter alguém olhando por mim, né, porque é tudo tão perigoso...", acrescenta Norma, fora do texto. Quando a plateia do teatro ouvir "terá sido mais um dia feliz", já não saberá mais quem fala.